MANIFESTO WEBDOUTRINATÓRIO
COMO FAZER ARTE COMUNISTA PARA O SÉCULO XXI
O impossível é a nossa única opção
Tanto na política como na arte, fomos dominados por uma força desmobilizadora. Ela é inteligente e perversa, pois nos engana usando a própria verdade. Seus tentáculos são muitos: o realismo capitalista, o pragmatismo gerencialista neoliberal (e seu complemento sombrio, a extrema-direita populista) a busca pelo retrô e pela nostalgia nas artes, a mesmice paradoxalmente instável da indústria cultural, a pandemia de depressão, a condenação dos fanatismos e das paixões (e a reapropriação dessas forças pela direita).
Esse monstro de mil faces pode ser invocado com um único nome: a narrativa do fim da transformação.
Aprendemos a aceitar, sem a menor crítica, um (aparente) paradoxo: cada vez mais as mudanças (em todos os âmbitos) aceleram-se; ainda assim, nada parece mudar de verdade. Revoltas, protestos e rebeliões? Todo ano tem. Novo estilo musical? Só mais outro clone de Joy Division e The Smiths. Novas séries? Provavelmente Os Simpsons com viagem interdimensional ou The Walking Dead sem zumbis. Novos movimentos políticos? Barbudos falando de tretas entre Trotsky e Stalin do século XX, ou asneiras praxeológicas de um falecido burguês austríaco veiculadas com fotos de garotas de anime.
A narrativa anti-transformatória quer que aceitemos essa esquisitice acriticamente, de dois modos: ou fingindo que isso não existe e continuando a consumir e a trabalhar, ou caindo no niilismo e na melancolia, potencialmente nos anti-depressivos ou no suicídio. Não nos dão alternativas.
Eis aqui o caráter maligno dessa narrativa: ela é verdadeira na medida em que, realmente, nada está mudando de fato. Mas também é falsa, por nos vender uma ideia errônea do que é uma transformação - e fazendo-nos esperar por ela, nos prender ao otimismo consumista ou à depressão.
Experimentar infinitas “novas” combinações entre elementos leva, inevitavelmente, ao oposto do infinito. Esperar todo ano por aquela explosão de insatisfação popular que finalmente irá tirar as pessoas do sono ideológico leva, inevitavelmente, a décadas e mais décadas de espera. Humanos são limitados, e não estão separados do passado. O número de possíveis melodias, enredos para filmes e propostas políticas não é infinito - a novidade e a transformação não residem na combinatória.
A arte é verdadeiramente nova e impactante quando nos afeta certeiramente - quando abala o que estava estabilizado, e não estabiliza-se em seu próprio abalo. O mesmo vale para a política - uma ideologia é “nova” quando tem impacto e encarna o que aparentemente é impossível para uma sociedade. A arte capitalista cooptou o próprio ímpeto de revolta e subversão das expressões contraculturais - infinitamente “quebrar padrões” é uma forma criativa de não quebrar padrão algum. Na política atual, também nos restam modos diferentes de “quebrar padrões” em nossos identicampos já determinados pelo Estado e pelo mercado. Progressista liberal, neoconservador, anarcocapitalista: escolha o sabor da sua opressão e perpetuação do Mesmo.
Qualquer expressão artística que deseje ser revolucionária precisa conseguir escapar da narrativa anti-transformatória. Terá que superar os desejos de resgatar o passado e de criar falsas novidades. Sua preocupação deve ser apenas uma: o que é impossível e impensável para a sociedade atual? Nós sabemos o que é “impossível” para o capitalismo: uma sociedade próspera na qual todes sejam livres. Um modelo cujo nome também tentou-se rejeitar e apagar: comunismo.
Como fazer arte comunista para o século XXI? Como fazer outras pessoas pensarem o impensável e fazerem o impossível?
Quero ajudar a responder essas perguntas. Este manifesto sintetiza as práticas artísticas da Doctrinationwave - e como eu, sua autora, infelizmente não sou tão modesta, creio que essa pequena exposição poderá ter utilidade para outras pessoas trabalhando com arte e propaganda comunista.
Modernismo pulp, ou aprendendo Hegel com letra de bregafunk
Comecemos esta seção pondo-a em prática. Quer entender um pouquinho de Hegel? Um dos aspectos principais das enrolações desse alemão esquisito é sua percepção de um fenômeno comum em nossas vidas e em nosso pensamento.
Quando duas coisas aparentemente são opostas, mas na verdade há uma terceira coisa por trás das duas, sustentando-as, eis aí a dialética andando de moto e atropelando pedestres. Vimos esse modo de relação entre coisas lá em cima, ao apontar que a narrativa anti-transformatória é o “terceiro elemento oculto” por trás da dualidade esquisita entre mesmice e pseudo-transformação do capitalismo tardio.
Esquerdistas twitteiros e tiozões bolsonaristas também são elementos da tal da dialética. Enquanto brigam entre si, praticam uma terceira ação que sustenta a ambos: assistir o BBB e dar lucro à Globo. O consumismo e a melancolia são inseparáveis, pois ambas se sustentam na crença de que não há nada a mudar, tudo será sempre o mesmo. Os exemplos são inúmeros.
Agora já pode sair por aí e ser aquele marxista chato que usa a palavra “dialética” a cada duas frases.
Nenhum conceito filosófico, científico ou político é “elevado demais”. Qualquer um pode entender qualquer coisa, desde que:
■ O tema lhe interesse.
■ Os recursos necessários para entender o tema lhe sejam ofertados.
Sim, sua vovó fazendeira de 80 anos pode entender mais-valia, dialética, teoria queer e a evolução das espécies. Basta que de alguma forma o interesse por esses temas surja, e que ela receba os recursos adequados (o apoio de um tutor, os livros e textos, o tempo livre) para aprendê-los.
Toda sociedade hierárquica e elitista aceita como fato incontornável a existência de uma cultura de rico e de uma cultura de pobre. E ela reforça essa separação até quando tenta-se sair dela - o estudante de Medicina de família humilde que agora só bebe vodka e dança eletrônica gringa e o militante policárpico que declarou voto de pobreza e morte a todos os USPianos não passam de duas pessoas que aceitaram uma imposição do Capital: “rico gosta de coisa de rico, pobre gosta de coisa de pobre, pau no cú de quem achar ruim.”
O capitalismo depende da existência de lugares e estratos sociais - pode até existir mobilidade, mas as posições em si não podem ser questionadas. É nosso papel destruir a divisão de classes em todos os âmbitos nos quais ela aparece. Para comunistas, não há lugar inescapável ou inquestionável.
Como pôr isso em prática na arte?
Mark Fisher nos dá uma dica - modernismo pulp. Em termos mais “elevados”, é inserir elementos vanguardistas em nossa arte “proletária”, ao ponto que a distinção não faça mais sentido - erudito e popular tornam-se um único ente. Trocado em miúdos, é quando nós, a ralé, fazemos o impossível: não abandonamos o que a elite vê como vulgar, e também gostamos de que a elite gosta; e se ela reclamar, ainda misturamos as duas culturas, para encher o saco mesmo.
Tal forma de modernismo evita diversas armadilhas e abre caminhos. Primeiramente, ela afasta um dos males de parte das artes pós-modernas: a tentativa de manter a cisão “erudito/popular” cooptando a arte popular, chamando-a de erudita, e tornando-a inacessível à própria população na qual surgiu. A clássica e tão falada “apropriação cultural”, digamos. Ou promovendo outra cisão - entre o industrial e o autêntico - cooptando expressões “espontâneas”, tornando-as mercadorias e lançando-as no mainstream. O modernismo pulp implica em lutar contra essas separações.
Evita-se também um comunismo de academia e de partido, que a ninguém interessa além de círculos de intelectuais e partidários. Para juntar elementos vanguardistas e populares, o artista precisa encontrar o ponto de conexão entre nossos interesses “imediatos” e objetivos mais abstratos, entre nossas idéias cotidianas e aquelas que nos são mais estranhas - localizar o diálogo entre meu cansaço depois de um dia de trabalho e as modalidades de mais-valia, entre a melancolia e falta de sentido que experiencio no capitalismo tardio e técnicas artísticas neodadaístas, entre minha insatisfação sexual e os papéis de gênero impostos pela sociedade e comodificados pelo capitalismo, entre minha paixão pelo universo cinemático da Marvel e a cooptação da arte pela indústria cultural.
Ou entre a Revolução Bolchevique e essa lapa de bumbum aí.
Fundamentalmente, é nosso papel rejeitar falsas cisões e encontrar pontos de comunicação entre elementos diferentes. Sabemos muito bem, por exemplo, que teoria e prática são inseparáveis. Uma boa base científica e filosófica impede ações inúteis e prejudiciais; construtos teóricos são inefetivos e vazios se não fundamentam práticas. São vias como a do modernismo pulp que permitem destruir as atitudes-irmãs e apenas aparentemente opostas do academicismo e do pragmatismo vulgar.
Escapa-se também da mesmice artística e cultural: não ficamos presos a gêneros pré-estabelecidos, e novidades surgem na medida que nossa junção louca possui sentido e caráter verdadeiramente subversivo. Coisas novas surgem quando junto técnicas do construtivismo russo e idols de K-Pop, uma batida de bregafunk e menções aos bolcheviques, ou citações de teóricos marxistas e cenas de anime. Faz-se uma antropofagia muito mais potente do que as mais mirabolantes criações do modernismo brasileiro de 1920, pois todos esses elementos dispersos são unificados sob uma posição comum: a abolição da divisão de classes na arte.
Ou, mais claramente: comunismo na arte.
Contra a indústria cultural, infecção cultural
Pode-se resumir o que virá a seguir em duas frases: a burguesia nos venderá a própria corda com a qual a enforcaremos, e a trilha sonora que tocará nos nossos celulares nesse momento fatídico.
Uma das maiores dificuldades para a efetividade da propaganda comunista nestes tempos é a ausência de exterior ao Capital: o capitalismo cooptou o próprio desejo de revoltar-se, “ser diferente”, separar-se dos demais, transformando-o em parte da dinâmica do mercado cultural. Até a arte verdadeiramente independente está submetida à lógica dos estratos sociais da qual tanto falamos acima: há a arte comercial e a arte subversiva e anticapitalista. O burguês da indústria cultural ri, feliz de existir um mercado principal e um concorrente, já planejando daqui há alguns meses cooptar as criações dos subversivos e ganhar mais grana.
Vanguardas contraculturais são sempre vulneráveis a esse destino: tudo que o capitalismo precisa fazer é isolar a subversão e eliminar o conteúdo político que sustentava o próprio caráter contracultural de uma obra ou gênero artístico. Vende-se a subversão pela subversão, lucra-se bastante, e de bônus enfraquece-se quem é anticapitalista.
Obviamente, não podemos frente a esses fatos simplesmente dizer “ok, acabemos com a contracultura”. Ela é necessária e tem seu papel. Cabe a nós pensarmos como criar um dispositivo que proteja-a da cooptação.
O que proponho é literalmente uma forma séria do que a extrema-direita nos acusa de fazer: infecção cultural- ** parodiar tudo na cultura pop que desperte qualquer interesse em outras pessoas, inserindo comunismo , numa estratégia de dar inveja aos delírios de Olavo de Carvalho. Esse modo de produzir arte comunista aproveita-se de certas características das mídias virtuais para ser efetiva e eficiente: sua viralidade , sua forte hipertextualidade e sua fácil reprodutibilidade/produção.
Todo conteúdo na Internet é, ao menos potencialmente, um meme. Uma das propriedades mais interessantes dos memes é certa “generalidade” e flexibilidade presente neles: um post criado para um determinado fim pode ter um efeito inesperado em parte do público-alvo, e por causa disso, ser difundido com um novo objetivo, passando uma mensagem diferente da original. É possível aproveitar-se disso para infectar conteúdos que já sejam populares, usando-os para nossos próprios fins.
Mídias virtuais também são fortemente hipertextuais - conteúdos fazem referências e conectam-se a diversos outros. A hipertextualidade é uma característica inerente da cultura, mas em um mundo altamente globalizado e conectado, ela se demonstra de maneira bastante vigorosa - e lucrativa. Referências, menções e conexões são praticamente parte da base de obras como o universo cinemático da Marvel. Infectar elementos da cultura pop com temáticas e mensagens comunistas é uma forma de criar uma rede de hipertextualidade sem ter que gastar 3,8 bilhões de dólares - determinados conteúdos passarão a “lembrar” o comunismo em quem os consome com dispêndio mínimo de recursos e tempo.
Economia e eficiência, aliás, são duas grandes vantagens de produzir mídia em nossos tempos. Quanto menos tempo e esforço forem necessários para produzir um conteúdo bem-feito e chamativo, melhor pra nós. Nesse sentido, é mais fácil utilizar elementos culturais já existentes do que criar do zero outros - não é à toa que gêneros artísticos/musicais recentes como o vaporwave ou o chillhop conseguiram grande (apesar de não tão duradoura) abrangência e uma impressionante produção: fazer colagens digitais ou construir músicas a partir de samples é fácil e efetivo, e ainda é uma forma de aproveitar-se da popularidade do material original.
Daí deduz-se o porquê de usar recortes nostálgicos de comerciais do McDonalds ou cenas de animes da década de 90.
Infectar a cultura pop é, no fim das contas, uma ferramenta barata, eficiente e efetiva.
Algumas diretrizes para esse tipo de estratégia:
■ Priorize fandoms e interesses que já sejam seus, ou memes/modas com as quais você já esteja bem familiarizade, para construir artes/memes mais espontâneos e evitar produções forçadas e toscas.
■ Evite paródias que apenas critiquem/tirem sarro do conteúdo original e não demonstrem suficientemente que há um posicionamento comunista por trás da sua produção. O ato de satirizar por satirizar produz memes facilmente cooptáveis, e é o modo típico no capitalismo tardio de fazer “rebelião vazia” - demonstrar que há algo de errado nas coisas, mas não oferecer alternativa.
■ Utilize o alcance obtido por essa estratégia para popularizar produções contraculturais e independentes de esquerda radical. Dessa maneira, coopta-se parte da força material da indústria cultural e evita-se que a estratégia de infecção cultural torne-se mais outra forma de dependência nossa em relação aos meios de comunicação burgueses.
■ A seriedade do meme/arte literalmente deve depender do que se quer passar, e do público-alvo a ser atingido. O que importa é ser efetivo e ter alcance.
Inconclusão: nada merece ser fixo
O terceiro pilar do que ponho em prática nas minhas produções artísticas, e que encerrará-se em um único parágrafo, é inconclusão: nada é fixo, tudo merece ser e revisado e modificado se a circunstância exigir. Nós que queremos enfrentar um sistema tão brutal e abrangente como o capitalismo precisamos estar dois, cinco séculos à sua frente - quando o Capital der um passo à frente, nós daremos três para a frente, um para trás, dois para a esquerda e uma pirueta. Este texto também será fiel a essa ideia.
Nenhuma versão deste manifesto é conclusiva, e ele sofrerá alterações frente ao que for aprendido em nosso projeto.
Esta é a versão 1.0 do Manifesto Webdoutrinatório. Você pode ter acesso a edições prévias do texto acessando seu Histórico em nosso Repositório do GitHub.